19 de set. de 2018

O conto da aia (Margaret Atwood) – BL 2018


Título: O conto da aia
Autora: Margaret Atwood
Mês: Setembro
Tema: Publicado na década do seu nascimento
Editora Rocco, 368p.

Em um futuro não tão distante, os EUA se tornaram uma ditadura religiosa cristã chamada Gilead. Depois de muitas guerras, um grupo de fundamentalistas tomou o poder e instaurou novas regras, sendo a principal: as mulheres perdem completamente seus direitos de escolha. Divididas entre as categorias de espoas, marthas, salvadoras, aias, etc, cada uma tem um papel específico. As aias, pois a história é contada do ponto de vista de uma delas, Offred (ou seja, de Fred, o nome do comandante, o marido e chefe de família que está abrigando a aia no momento) são as responsáveis por engravidarem. As esposas que não podem ter filhos empregam aias, engravidadas pelos seus maridos em um acontecimento chamado de Cerimônia, que darão a luz as crianças e depois serão mandadas para outro lugar. Em meio aos relatos de Offred, ela também insere flashbacks de sua vida de antes e do que ela um dia teve, de quem ela um dia amou.

Um homem é apenas a estratégia de uma mulher para fazer outras mulheres. [...] Mas há alguma coisa faltando neles, mesmo nos que são gentis e bons sujeitos. É como se estivessem permanentemente distraídos, como se não conseguissem se lembrar muito bem de quem são. Olham demais para o céu. Perdem o contato com os pés. Não se comparam a uma mulher, exceto pelo fato de que são melhores para consertar carros e jogar futebol, exatamente o que precisamos para o aperfeiçoamento da raça humana, certo?

Depois de ver tanta gente falando da série, eu quis o livro (não adiante, quando se trata de adaptação, eu sempre tento ler o livro antes). Não sei dizer qual dos dois materiais é o mais forte. Achei que vendo a cena da Cerimônia, consideraria a série mais repugnante. Mas na verdade, os dois matérias são, a sua própria maneira. O livro de Margaret Atwood é uma distopia diferente, em vários níveis, de qualquer outra distopia que eu já li, sua forma de escrita e narrativa me deixou, confesso, desnorteada. Somente quando terminei entendi o porquê disso.
A história joga na nossa cara verdades que as pessoas preferem não discutir ou mesmo tomar conhecimento, como o fato da nossa cultura patriarcal levar as mulheres a condenar, julgar e odiar a si mesmas, a justificar erros de homens enquanto culpabilizam mulheres (isso se reflete na cultura do estupro). Somos levadas a justificar através da religião a dominação masculina, a nos silenciar e nos invalidar. Deve ser por isso que a série alcançou tanto sucesso e ganhou prêmios valiosos. Uma história muito pertinente ao mundo atual em que vivemos, vale cada minuto da leitura.

A série


Depois de ler o livro, você sabe que o que acontece com June (ou Offred) não tem jeito, mesmo que a série comece de uma forma que leve a pensar que tudo vai ser diferente. Escolheram dar logo um fim em Luke (?), diferente do livro, onde se passa a leitura inteira tentando imaginar o que houve com ele. 
No livro, só descobrimos, e isso por hipóteses, o nome do Comandante no final, de uma forma inesperada, mas na série sabe-se logo de primeira, assim como a exigência de respeito que a Sra. Waterford exige, não exatamente por causa da figura que foi no passado mas aquele tipo de respeito que uma mulher deve a outro no que concerne a maridos. June foi mostrada de maneira diferente do que esperava, mas gostei dessa mudança. 
Enquanto no livro ela parece um pouco passiva demais (nem sei se estou usando a palavra correta para descrevê-la), na série sua aparência calma não demonstra seus pensamentos irônicos e revoltados, mas vemos que seu estado é de uma pessoa prestes a explodir que se controla por mera força de vontade.

Devotinha de merda.

O encontro de June e Moira depois de tudo acontecer também é diferente na série, e eu gostei de ver que algumas coisas eles resolveram mostrar sem usar meias palavras ou deixar a cargo da imaginação do observador (como no livro): o objetivo de toda a situação (as mulheres devem gerar as crianças dos casais fiéis), os castigos impostas aquelas que se recusavam a “cooperar”.
Outra personagem que me chamou atenção foi a Sra. Waterford, que despertou um pouco de pena (no primeiro episódio, somente, porque a personagem é odiosa, mesmo levando em conta a situação dela). No livro, percebe-se que as mulheres inférteis são totalmente pertencentes a esse sistema absurdo em que vivem, e que elas exigem o respeito da lealdade, não querem ser traídas por nenhuma “aia que resolva se engraçar com o patrão para ver se ganha alguma coisa”, mas é muito mais que isso. Pelo menos na série, pela patroa de Hannah (pelo menos no primeiro episódio), dá para ver algum sofrimento por não conseguir gerar uma criança.
Eu fiquei meio louca assistindo a primeira temporada dessa série, mesmo já tendo lido o livro e já sabendo de uma nova temporada, cada passo que June dava fora do programado me levava a pensar que a qualquer momento ela seria descoberta, pega e morta. Os abusos conseguem ser bem piores também. Outras coisas como a situação de Ofglen, o envolvimento entre June e Nick e a tolerância maior da Sra. Waterford para com June também foram coisas que tiveram mudanças, o que foi bom, porque eu já estava imaginando o que inventariam para que o livro fosse adaptado em duas temporadas. A mudança maior: Tya Lydia, que no livro parece uma pessoa obcecada com os preceitos religiosos que governam aquele lugar e que sim, pune aqueles que erram, mas na série a mulher é uma megera completa. Algo interessante é a quantidade de flashbacks da vida dos Waterford e como eles estavam envolvidos nos problemas iniciais, assim como as lembranças de Offred de sua vida como June e de que forma ela foi perdendo essa vida e sua segurança.

- A raça humana está em risco. O que importa é a eficiência.

- E o que propõe?

- Não é física quântica. Todas as mulheres férteis devem ser coletadas e engravidadas. Pelos de maior status, claro.
- Quer dizer, concubinas.
- Não me interessa como quer chamar.
- As esposas jamais aceitariam.
- Não é um problema.
- Não conseguiremos sem apoio delas, sabe disso.
-Talvez a esposa devesse estar presente. Para o ato. Não seria tanta violação. Há precedente bíblico.
- “Ato” talvez não seja o melhor nome. Em termos de marketing. A “Cerimônia”? Melhor. Bom e divino.
- As esposas aceitariam essa besteira.


A série rendeu uma segunda temporada que manteve o foco na aia e se distanciou do que é contado no livro, mas continuou mantendo o mesmo ritmo envolvente. De vez em quando, dentre os vários momentos em que você se pega odiando fazer parte da humanidade, eis que surge um sopro de esperança (episódio 06, "First blood", que o diga), fazendo da surpresa seu Ás na manga.

Nenhum comentário:

Postar um comentário